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segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Primeiro Amor


O dia estava frio, mas o corpo suava todo. Os cabelos negros e escorridos lhe caiam sobre a testa molhados e embaraçados.
De cima de sua cama o pequeno menino se encolhia nervoso contra a cabeceira, olhando fixamente para o vão inferior da porta, como se dali fosse saltar a mais incrível de suas fantasias. Seus olhos esbugalhados e ansiosos relutavam para não piscarem, medrosos de perder qualquer detalhe. A boca contraia-se contra os dentes e abria-se somente para recuperar o ar que lhe faltava em intervalos periódicos. Os pés minúsculos voltados para dentro comprimiam o travesseiro macio. Seu tronco pequenino encolhia-se sobre as mãos que, apoiadas nos joelhos, agarravam o lençol listrado inexoravelmente, marcando-o com seus sulcos delicados.
A espera lhe torturava o coração. Conseguiria sobreviver àquela espera? Por que é que ela não chegava? Não teria sentido o mesmo que ele? Impossível! Lembrava com exatidão, como se fosse o momento mais fantástico que tivera vivido, quando se encontraram pela primeira vez... Não é possível que somente ele havia sentido... Ela também deveria ter sentido, ele sabia que sim... Ela sentiu, claro que sentiu! E também deve estar ansiosa para reencontrá-lo hoje, o dia tão esperado. Mas por que demorava tanto? Por que é que ela não chegava?
O coração palpitava forte. Sentia-se cansado; seria mais fácil se tivesse corrido milhares de quarteirões sem descanso. O pulmão não era grande o bastante para respirar todo o ar que necessitava naquele momento. O corpo tremia por inteiro numa sensação indescritível de descontrole e rebeldia...
E então um estalo na porta denunciava que finalmente haviam chegado, ela havia chegado! Agora ele deveria ir até ela e mostrar tudo o que sentia, dizer que sentia saudades, abraçá-la e... Mas sequer respirava, permanecia estático, sem ação, sem coragem... E em seu pequeno conflito interno ele permanecia, enquanto a ouvia se aproximando lentamente... Enquanto vivia a sensação de finalmente tê-la ali... Enquanto escutava o doce som que ela fazia quando andava pelo assoalho do corredor... Enquanto saboreava a sensação de finalmente ter sua primeira bicicleta!

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Casamento



A marcha nupcial já estava nos últimos tons e nenhuma pétala havia sido pisada. Os últimos raios solares do dia atravessavam os vidros empoeirados da igreja. As flores pareciam ser as únicas coisas ainda vivas naquele lugar. Não havia emoção, não havia lágrimas, nada...
A respiração da noiva já não garantia a oxigenação de seu corpo, a escada não incomodava mais seu quadril, os rasgos em seu vestido não lhe traziam mais nenhum constrangimento e o vento empoeirado que passava era o único motivo pelo qual ainda havia movimento naquela cena.
Mas ela ainda estava lá, sua alma ainda permanecia em seu corpo magro e lânguido. Deveria esperar por sua hora de entrar. Esperar pela parte em que abririam a porta e ela enfim sorriria docemente a todos que a aguardavam ansiosos. E ela leria nos olhos de todos o desejo de que ela fosse feliz para sempre...
Seu corpo estava jogado de lado, semi-encolhido e com as pernas juntas. As luvas desfiadas marcavam suas mãos pequeninas, que permaneciam segurando o buquê de galhos secos em frente ao rosto. O véu encardido cobria seus olhos fechados e seu nariz pontudo, deixando à vista somente sua boca de lábios finos, borrados de batom.
Estava tudo como ela sonhara: violetas presas aos bancos em arranjos graciosos com pano branco, as pétalas roxas espalhadas pelo tapete, e as velas sobre o altar... E ele estaria no altar, nervoso como ela, ansioso para cruzarem finalmente aquela porta e viverem todas as coisas que planejaram juntos.
O sapato esquerdo se encontrava ao pé da escada, com o salto rachado, e seu pé ossudo descalço era enfeitado pela meia branca vazada de flores. Os joelhos quadrados embaraçavam-se e se escondiam por entre a cauda de seu vestido amarelado. O grande laço em sua cintura havia sido desfeito e o pano estava estirado sobre a escada, sem beleza, sem forma, sem vida.
E ela se concentrava, fixa, pronta para quando dessem o sinal. Estava pronta para que quando todos chegassem ela não estivesse atrasada. Pronta para que quando fosse perguntado, ela não demorasse a dizer sim. Estava pronta para viver o momento mais feliz de sua vida...
Esperando... Feliz... esperando... Para sempre... esperando... Em suas ilusões... esperando...

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

O anjo

E então, o príncipe altivo gritou de cima do monte:
- Enfim cheguei para salvar-te, princesa. Grite de onde estiver!
Os ecos de suas palavras foram os únicos ruídos de resposta.
- Seja quem fores tu. Estou aqui para resgatar-te.
Novamente os ecos e em seguida o silêncio fúnebre do entardecer predominava à sua volta.
O príncipe então suspirou com melancolia e começou a descer do monte. Pelos sulcos de sua face descia uma densa lágrima e seu olhar vazio demonstrava a profunda decepção que habitava seus pensamentos. Descia com passos pesados e vagarosos, como se o corpo fosse um fardo a ser carregado.
Então, ao desviar de uma fenda no chão, tropeçou em algo que pareceu ser um galho espinhoso e retorcido e, pela dor causada ou pelo simples susto, perdeu o equilíbrio e rolou desengonçadamente, caindo sobre uma grande pedra plana. Endireitou-se sem ânimo, de forma a sentar-se, e ao fazê-lo avistou um ser aparentemente humano, mas de características estranhas que ele não saberia distinguir.


A criatura o encarava, soltando uma enorme gargalhada, sentada sobre a mesma grande pedra. O que lhe causou certa irritação:
- Alegra-se de minha desgraça?
- Sim - Respondeu a criatura sem constrangimento.
- E o que há de tão engraçado?
- Tudo, oras! Já é a milésima vez que lhe vejo tentando resgatar alguém, que eu nem faço idéia de quem seja, e hoje, além da frustração de sempre, conseguiu um belo arranhão na panturrilha!
- Que espécie de pessoa você...
- Um anjo. Não sou uma pessoa, sou um anjo...
- Pois, você, um anjo. Nunca se equivocou com seu próprio coração?
- Coração? – E a feição antes debochada do anjo tomou a forma de um leve e confuso despeito – Acho que não tenho um coração!
- Sorte a sua!
- Também não sei o que é sorte.
- Ainda assim a tem, por não saber que tem um coração! Agora me deixe, pois preciso continuar meu caminho.
- Espere... Quando você vai assim, sinto algo dentro de mim...
- Um alívio?
- Não. Não é algo que gosto de sentir, é como um vazio entre os músculos e os ossos.
- Um vazio?! Mas como pode sentir um vazio pela ausência de alguém, se nem acredita ter um coração?
- Não sei, você pode me explicar?
- Eu? Não entendo nem os meus problemas! Mas posso tentar lhe ajudar, se for breve. Aliás, mostra-me como os anjos voam?
- Eu também não sei voar!
- O que você sabe então?
- Saberei tudo o que você me ensinar! Volte e fique aqui comigo, para que me ensine tudo.
- Quer mesmo? E se você se cansar de mim?
- Só me cansarei de você, quando me ensinar isso, se cansando de mim primeiramente.
- Mas ainda tenho uma missão. Preciso resgatar alguém!
- Quando você subiu este monte hoje, buscava alguém para resgatar, mas não escutou som algum, por que ainda não compreendia a linguagem de quem procurava. Mas ao tropeçar na rosa que eu cultivava, entrou em contato com o que eu tinha de mais precioso, por isso me tornei vulnerável e visível a seus sentidos e você, por ingênua curiosidade, acreditou em meus sentimentos que ainda nem existem. Resgatou-me enfim de minha solidão...
Agora volte para que ensine tudo!

domingo, 16 de agosto de 2009

Espectro de Ventos

Era uma vez...

Acho que duas...

Na verdade são um monte de vezes! Vezes em que as imagens, sons, gostos e texturas mais profundamente entranhadas em meu imaginário parecem se misturar de repente e um sopro de idéias surge aos atropelos, me trazendo aquelas sensações que são difíceis de sentir, quando estou muito atento.

Então eu me deixo, lanço a alma a flutuar em leveza inercial, por entre os ventos criados por minhas absurdas abstrações, pelo sublime ruído do arranhar das cores na textura dos meus desejos e pelo cheiro da terra escura e úmida daquela floresta que habito em sonhos.

Nada, nesse momento, foge aos meus torpes sentidos. Como se estivessem todos num mesmo espectro, trazido por ventos ao meu encontro.

E eu...

O espectro...

Em devaneios...

Em ventos...

Construo um mundo, que ofereço àqueles que se "curiositarem" a visitar!